29 de julho de 2011

Poema do Zazen - Kodo Sawaki Roshi


Fazendo zazen calmamente no dôjô,
Colocando de lado todos os pensamentos negativos,
Obtendo nada além de uma mente sem desejos —
Esta alegria está além do paraíso.

O mundo corre atrás de fama e honra,
Roupas bonitas e conforto,
Mas estes prazeres não são a verdadeira paz —
Você corre e permanece insatisfeito até a morte.

Vista o kesa e o kimono preto e pratique o zazen,
Concentre-se com determinação —
Quer esteja quieto ou em movimento,
Veja com seus olhos a profunda sabedoria interior.

Observe e conheça intimamente
O verdadeiro aspecto de toda ação e de toda a existência —
Seja capaz de observar o equilíbrio,
Compreenda e conheça com uma mente que está totalmente calma

Se você é assim,
Sua dimensão espiritual —
A mais elevada no mundo —
Estará além de qualquer comparação.

Zazenkai em Londrina

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25 de julho de 2011

Uma Jóia Brilhante - (IKKA MYOJU) - Dogen Zenji


Tradução para o Português de Giovanni Dienstmann




Introdução de Thomas Cleary


Esta dissertação enfatiza a unidade total do ser, um tema persistente dos escritos e declarações de Dogen Zenji. Ela é baseada em uma famosa frase de um mestre dos tempos antigos, que diz que o mundo inteiro, todos os mundos, ou o universo inteiro, é “uma jóia brilhante”.
Quando um discípulo perguntou ao mestre sobre como entender essa declaração, ele disse, “O que isso tem a ver com entendimento?” ou “Por que você quer entender?” ou “Qual é a utilidade do entendimento?”. Cada um desse pontos é algo sobre o quê vale a pena refletir, mas a mensagem fundamental aplicável à qualquer maneira que nós leiamos isso parece ser a de que a unidade do ser é uma realidade, quer nós a compreendamos conscientemente ou não; o ser não se torna unidade através da compreensão. Além disso, o entendimento conceitual, com a sua inerente discriminação, pode facilmente obscurecer essa unidade ao invés de revelá-la, e nós acabaríamos “perdendo a floresta pelas árvores”.
Isso não significa, no entanto, que a única alternativa é a ignorância: na história, quando o discípulo devolve ao mestre a mesma resposta no dia seguinte, o mestre faz uma observação sugerindo que o discípulo está se apegando ao não-entendimento, ou simplesmente se apoiando em um chavão no lugar da verdadeira compreensão. Ao longo desta dissertação Dogen mostra como evitar perder o todo pelas partes, enquanto ao mesmo tempo ainda apreciar a infinita variedade das partes como “adornos” do todo, como “luzes” da “jóia única”.


Texto de Dogen Zenji


O grande mestre Gensha tinha o nome religioso de Shibi; o seu sobrenome leigo era Sha. Na sua vida leiga ele gostava de pescar e costumava transitar o seu barco no rio Nandai, seguindo os caminhos dos pescadores. Ele deve ter pego, sem expectativa, o peixe dourado que surge por si mesmo sem ser pescado. No início da era Kantsu da dinastia Tanga (860-873), ele repentinamente desejou deixar o mundo; então ele deixou o seu barco e foi viver dentro das montanhas. Naquela época ele tinha trinta anos. Realizando o sofrimento do mundo transitório, ele percebeu o elevado valor do Caminho do Buda. Finalmente, ele escalou a Montanha do Pico Nevado, encontrou o Mestre Zen Seppo, e praticou o Caminho noite e dia.
Certa vez, a fim de estudar o Zen profundamente, ele pegou sua mochila e foi sair da montanha, mas no caminho ele bateu seu pé em uma rocha, e, como começou a sangrar dolorosamente, ele de repente teve um poderoso insight e disse: “Este corpo não existe – de onde vem a dor?”. Então ele voltou para ver Seppo. Seppo lhe perguntou: “Quem é o asceta Shibi?” Gensha disse: “Eu nunca ouso enganar as pessoas”. Seppo gostou muito dessa resposta, e disse: “Quem não tem essa afirmação? Quem pode pronunciar isso?” Seppo perguntou, ainda: “Asceta Shibi, por que você não viaja e estuda?” Ele respondeu: “Bodhidharma não veio da China, o segundo patricarca não foi à Índia[1].” O mestre Seppo lhe louvava por essa afirmação. Como Gensha tinha sido um pescador até então, ele nunca tinha visto as escrituras e tratados nem em sonhos, mas como a profundidade de sua aspiração era suprema, seu espírito resoluto superava o dos outros. Seppo o louvava como sendo um modelo para os outros discípulos. Ele costumava se vestir sempre com o mesmo manto e por isso seu manto estava todo remendado. Ele usava papel e plantas como roupa de baixo. Ele não buscou nenhum outro mestre além de Seppo. Todavia, ele alcançou o poder de herdar o caminho de seu mestre.
Depois dele ter finalmente alcançado o Caminho, ele dizia às pessoas: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante”. Um monge lhe perguntou: “Eu ouvi dizer que você tem um dito, que o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como os estudantes devem entender isso?” O mestre disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?”  No dia seguinte o mestre perguntou àquele monge: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como você entende isso?” O monge lhe respondeu: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?” . O mestre replicou: “Eu sabia que você andava vivendo em uma caverna fantasmagórica na montanha da escuridão.”[2]
Esse provérbio, que o mundo inteiro nas dez direções é uma jóia brilhante, começou com Gensha. A mensagem essencial é que o universo inteiro não é vasto, nem pequeno, nem redondo, nem quadrado, nem equilibrado e correto, nem animado e ativo, nem se sobressaindo. Além disso, como não é nascimento e morte, ir e vir, é nascimento e morte, ir e vir. Sendo assim, tendo passado daqui, agora vem daqui. Fazendo uma investigação completa disso, devemos vê-lo como sendo sem peso, devemos descobrir que é sincero, com uma só mente.
As dez direções é o não-parar de perseguir as coisas como si-mesmo, perseguir o si-mesmo como coisas. Expressar que quando surgem as emoções a sabedoria é obstruída como sendo obstrução é virar a cabeça, mudar a face, é relatar eventos, encarar a situação. Porque perseguir o eu como sendo as coisas é as dez direções que é o não-parar. Como trata-se do princípio do começar, há superabundância na mestria do eixo da função. É uma jóia brilhante, que apesar de ainda não ser um nome, é uma expressão. Mas isso já foi tomado como sendo um nome. Quanto a uma jóia brilhante, ela é mesmo dez mil anos; como se estende ao longo de toda a antiguidade, e ainda não chegou, se estende pelo presente, tendo chegado. Apesar de existir o presente do corpo e o presente da mente, trata-se de uma jóia brilhante. Não é as plantas e arvores daqui e dali, nem as montanhas e rios dos céus e da terra – é uma jóia brilhante.
Como podem os estudantes entender isso? Quanto a essa declaração, mesmo que pareça que o monge estava usando a consciência ativa, trata-se da grande função manifestando o ser uma grande norma. Indo adiante, nós deveríamos fazer com que um metro de água, um metro de onda[3] apareça fortemente. É isso que é chamado de dez metros de jóia, dez metros de brilho. Para expressar o que ele quis dizer, Gensha disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com entendimento?” Esse ditado é uma expressão dos Budas sucedendo aos Budas, mestres Zen sucedendo aos mestres Zen, Gensha sucedendo a Gensha. Ao tentar escapar da sucessão, apesar de não significar que “não há lugar para onde escapar”, mesmo se nós claramente escaparmos por hora, enquanto houver o aparecimento da expressão, trata-se do encobrimento [ou inclusão] do tempo pela manifestação.
No dia seguinte Gensha perguntou ao monge: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como você entende isso?” O que ele está dizendo é, ontem eu falei um princípio definido; hoje, usando uma segunda camada, ele transpira energia[4] hoje eu falo um principio indefinido – ele está afastando o ontem, mexendo a cabeça e rindo. O monge disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?”. Nós podemos chamar isso de perseguir o ladrão usando o cavalo do ladrão. Segundo a explicação de um antigo Buda, isso é agindo dentro de diferentes espécies[5]. Por um tempo você deveria virar a luz para dentro e refletir – quantos níveis de o que isso tem a ver com o entendimento existem? Tentando responder, apesar de vocês poderem dizer que é sete panquecas de leite, sete panquecas de vegetais, esse é o ensinamento e prática do sul de Shô, norte de Tan[6].
Gensha disse: “Eu sabia que você andava vivendo em uma caverna fantasmagórica na montanha da escuridão”. Saiba que cara de sol, cara de lua[7] jamais mudou desde a mais remota antiguidade. Cara de sol surge junto com cara de sol, e cara de lua surge junto com cara de lua, então se no sexto mês você pensa que é a hora certa, você não pode dizer que a sua natureza está madura[8]. Logo, o início ou não-início dessa jóia brilhante não tem ponto de referência – é o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante. Ele não diz duas ou três – o corpo inteiro é um único olho da verdade, o corpo inteiro é a corporificação da realidade, o corpo inteiro é uma frase, o corpo inteiro é luz, o corpo inteiro é o corpo inteiro. Ao ser corpo inteiro, o corpo inteiro não possui nenhuma obstrução – ele é perfeitamente redondo, ele rola suavemente. Como as qualidades da jóia brilhante são assim manifestas, existe Kannon e Miroku[9] do presente vendo formas e ouvindo sons, existem os velhos Budas e novos Budas que aparecem fisicamente para expor a verdade. Neste momento, quer esteja pendurado no céu ou dentro da nossa roupa, ou debaixo do nosso nariz, ou dentro do topete – em cada caso é o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante.
Pendurar dentro da roupa é considerado a maneira certa – não diga que você irá pendurá-la fora da roupa. Pendurar dentro do topete ou debaixo do nariz é considerado a maneira certa – não tente usá-la fora do topete ou do nariz. Tem um amigo próximo que lhe dá a jóia enquanto você está intoxicado com vinho – para um amigo próximo a jóia deve ser dada. No momento em que a jóia é pendurada, sempre se está intoxicado com vinho. Sendo assimdade, é a jóia brilhante que é o mundo inteiro nas dez direções. Dessa maneira, apesar de parecer que ela muda de cara, vira ou não vira, ainda, é uma jóia brilhante. É precisamente o saber que a jóia sempre foi assim que é em si mesmo a jóia brilhante. A jóia brilhante tem som e cor que parecem assim. Em já se estando na assimdade, no que diz respeito à preocupação de que nós não somos a jóia brilhante, nós não deveríamos suspeitar que isso não é a jóia. Preocupação e dúvida, apego e rejeição, ação e inação nada mais são do que visões temporárias de pequena escala. Na verdade, elas apenas estão se assemelhando à pequena escala. Tais luzes e brilhos da jóia brilhante são ilimitados – não é encantador? Cada oscilação, cada feixe, cada brilho, cada luz é uma qualidade do mundo inteiro nas dez direções. Quem pode afastá-los? Não há lançar uma telha no mercado[10]. Não se preocupe sobre virar vítima ou ser ofuscado[11] pela lei de causa e efeito das existências mundanas – a desimpedida jóia brilhante original que é completamente verdadeira é o rosto; a jóia brilhante é os olhos.
Entretanto, para você e para mim, o “pensar sobre tudo, não pensar sobre nada” que não sabe o que é e o que não é a jóia brilhante pode ter juntado forragem de claridade; mas, se por meio da declaração de Gensha nós pudermos ouvir e compreender com são o corpo e a mente que são a jóia brilhante, veremos que a mente não é o si-mesmo – assim, quem iria preocupar-se em se apegar ou rejeitar o vir-a-ser e a extinção como sendo a jóia brilhante ou como não sendo a jóia brilhante? Mesmo se nos preocupamos e duvidamos, isso não significa que não é que isso não é a jóia brilhante. Como não é uma ação ou um pensamento que é causado por algo existindo que não seja a jóia brilhante, o fato é que andar para frente e para trás na caverna fantasmagórica na montanha da escuridão é simplesmente uma jóia brilhante.
[1238]


(Tradução baseada na versão inglesa de Thomas Cleary.)



[1] A implicação disto é que a realidade é onipresente.
[2] “Caverna fantasmagórica na montanha da escuridão” geralmente é usada no Zen para referir-se ao estar aferrado na quietude, na imobilidade, na concentração sem forma, no não-saber. Também é chamado de “apegar-se a uma visão unilateral do vazio”, ao vazio niilista. Essa é a utilização dessa metáfora em relação à meditação. Além disso, ela também é usada para referir-se ao apego a conceitos estereotipados.
[3] “Água” representa a essência, a vacuidade, o númeno; “ondas” representa as características, as aparências, os fenômenos. “Um metro de água, um metro de onda” refere-se à realização da perfeita integração entre vacuidade e existência.
[4] “Transpira energia” ou “exibe vida” é usado para referir-se ao funcionamento ativo ou flexibilidade, que significa não ficar preso em uma única posição ou lugar-comum.
[5] “Agindo dentro de diferentes espécies” é um termo técnico da escola Soto Zen chinesa e basicamente tem o significado de agir no mundo em qualquer forma que seja apropriada. Sozan (Ts’ao Shan), um dos progenitores da escola, escreveu: “A assimilação dos bodhisatvas a várias espécies significa primeiro entender a si mesmo, e depois disso entrar nos diferentes tipos de nascimentos para libertar os seres; apesar de já terem realizado o Nirvana, eles não abandonam as criaturas na vida e morte, mas sim fazem o voto de ajudar a todos os seres a atingir a Budeidade”. Sozan discute vários tipos ou aspectos de “agir dentro de várias espécies”, mas em geral “diferentes espécies” significa o mundo da diferenciação, todos os tipos de formas e estados.
[6] “Sete panquecas de leite, sete panquecas de vegetais” significa “tudo”, e “sul de Shô, norte de Tan” significa “todos os lugares (comparar com o caso 18 do Registro do Penhasco Azul). Tudo é a “jóia brilhante”, todas as coisas em todos os lugares é assimdade – descrições e entendimentos específicos tem a sua utilidade, mas são fragmentários por natureza e não abrangem o todo. Entretanto, como esse princípio se estende à todos os entendimentos específicos, como enfatiza a filosofia Kegon, o um é o todo e o todo é um. Na sinédoque Zen, qualquer objeto particular pode ser empregado para representar todo o ser.
[7] Comparar com o caso 3 do Registro do Penhasco Azul.
[8] Um antigo mestre disse: “Cada dia é um bom dia”. Comparar com o caso 6 do Registro do Penhasco Azul.
[9] Kannon é Avalokitesvara, o bodhisatva da compaixão; Miroku é Maitreya, o bodhisatva da generosidade.
[10] “Lançar uma telha no mercado” para conseguir uma peça de jade em troca significa dar pouco para ganhar muito. Um dia alguém expôs duas linhas de um verso poético em um templo onde um grande poeta iria visitar, esperando assim provocar o poeta a terminar o verso. As linhas escritas pelo porta eram de qualidade superior, e por isso dizem que o homem que escreveu as duas primeiras linhas “lançou uma telha para conseguir jade”.
[11] Em uma história Zen muito conhecida, um velho homem disse ao mestre Zen Hyakujo que ele tinha sido um mestre no passado, mas que quando um monge tinha lhe perguntado se alguém que atingiu altos níveis meditativos ainda era sujeito ao carma, ele respondera que não, e por causa disso havia sido condenado a encarnar-se como uma “raposa selvagem”. Então o velho homem fez a mesma pergunta a Hyakujo, que respondeu que alguém que atingiu altos níveis meditativos “não é ofuscado pela lei de causa e efeito”.

18 de julho de 2011

A Atividade Total da Existência - Dogen Zenji

Introdução de Thomas Cleary


Essa dissertação  lembra fortemente o ensinamento central da escola Kegon: a originação interdependente, e seus corolários lidando com a interprenetração da existência e da vacuidade, unidade e multiplicidade.
A palavra zenki é composta por dois elementos: zen, significando “todo”, total ou completo; ki  possui vários significados, sendo que aqueles relevantes para esse caso incluem “mecanismo”, no sentido de maquinaria, potencial, ímpeto, força vital, e fluxo [atividade] da natureza. Ki refere-se aos fenômenos no seu aspecto dinâmico, e ao ponto vital ou dinâmico que sustenta e é revelado pela coexistência fenomênica ativa. Em termos Kegon, Ki inclui tanto o sentido de fenômenos como o de princípio, “fenômenos” sendo as coisas interdependentes, e “princípio” sendo a interdependência em si mesma. Zen refere-se à inclusividade e “penetratividade” de ki em seus dois aspectos. Traduzimos zenki como “a atividade total da existência”  para comunicar a noção da inclusão de toda existência e a noção da dinâmica total que subjaz às manifestações da existência.
No caso número sessenta e um do clássico Zen “Registro do Penhasco Azul” lê-se: “Se um único átomo é estabelecido, a nação floresce; se um único átomo não é estabelecido, a nação perece.” Esta dissertação de Dogen pode ser vista como sendo toda centrada sobre uma reformulação desse tema: “Na vida a atividade total da existência é manifestada; na morte a atividade total da existência é manifestada”, ou, colocando a mesma passagem de outra maneira, “A vida é a manifestação da atividade total da existência; a morte é a manifestação da atividade total da existência.”
Em termos da equação existência-vacuidade, do ponto de vista da existência (representado pelos termos “estabelecer” e “vida”) tudo o que é existe, enquanto que do ponto de vista da vacuidade (“não estabelecido” e “morte”) tudo é vazio. A concorrência da existência e da vacuidade não se dá como se fossem entidades separadas, mas sim como diferentes aspectos ou perspectivas da mesma totalidade.
A passagem do “Registro do Penhasco Azul” citada acima alude à doutrina Kegon que afirma que os fenômenos não existem individualmente, mas interdependentemente, e que a multiplicidade depende da unidade assim como a unidade depende da multiplicidade. Um refinamento desse princípio na filosofia Kegon é chamado de “o mistério do principal e dos satélites”: isso significa que qualquer elemento de uma cadeia causal pode ser visto como eixo, ou “principal”, sobre o qual todos os outros elementos se tornam condições cooperativas, ou “satélites” – portanto, cada elemento é ao mesmo tempo “principal” e “satélite” em relação a todos os outros elementos. É a mutualidade, a complementariedade desses elementos que os fazem ser funcionalmente o que são. Dogen representa esta idéia comparando a vida ao andar de barco – nós não somos nada sem o barco, e, ainda, é o nosso andar no barco que o torna efetivamente um “barco”. Além disso, “o barco é o mundo – até mesmo o céu, a água, e a costa são circunstâncias do barco...Toda a terra e todo espaço são aspectos da vida do barco.”
A distinção entre existência e vacuidade, a não contradição e interpenetração mútua entre existência e vacuidade, e com isso a transcendência da existência e da vacuidade – esses são os passos tradicionais da dialética do Budismo Mahayana. Nesta dissertação eles são apresentados por Dogen com a sua maneira sutil, quase vedada de se expressar, obviamente para induzir o leitor a buscar esses insights através da sua própria contemplação pessoal. A visão última da totalidade, na qual o todo e os indivíduos promovem um ao outro – o ápice da metafísica Budista Kegon – é um dos temas fundamentais dos escritos filosóficos de Dogen Zenji, um tema a ser encontrado com tempo e repetidas vezes em seus vários aspectos. Nesta dissertação ele é transmitido da maneira mais sucinta, valendo representar a filosofia Zen Budista.



Texto de Dogen Zenji

            O Grande Caminho dos Budas, em sua realização, é uma passagem para a liberdade, é efetivação. Essa passagem para a liberdade, em um sentido, é que a vida passa através da vida para a liberdade, e a morte também passa através da morte para a liberdade. Portanto, existe o deixar a vida e morte, existe o entrar na vida e morte; ambos são o Grande Caminho da realização. Existe o abandonar a vida e morte, existe o atravessar a vida e morte; ambos são o Grande Caminho da realização.
            Efetivação[2] é vida, vida é efetivação. Quando essa efetivação está ocorrendo, é sem exceção a completa efetivação da vida, é a completa efetivação da morte. Essa atividade central pode causar a vida e morte. No momento preciso da efetivação dessa atividade, ela não é necessariamente grande, não é necessariamente pequena, não é “penetra em todas as coisas”, não limitada, não extensa, não curta.
            A vida presente está nessa atividade, essa atividade está na vida presente. A vida não é vir, não é ir, nem presente, nem  “vindo-a-ser”. No entanto, a vida é a manifestação da atividade total da existência, a morte é a manifestação da atividade total da existência . Saiba que dentre as infinitas coisas existentes em nós mesmos, há a vida e morte. Pensem calmamente: essa vida atual e a miríade de coisas estão juntas ou não? Não existe nada em absoluto, nem mesmo um único tempo ou um único fenômeno, que não seja um com a vida. Seja mesmo uma única coisa, uma única mente, nada está separado da vida.
            A vida é como o andar de barco: apesar de no barco nós manejarmos a vela, o leme e o mastro, é o barco que nos carrega, e nós não somos nada sem o barco. Andando no barco, nós fazemos com que o barco seja um barco. Nós devemos meditar sobre esse ponto preciso. Neste momento, o barco é o mundo – até mesmo o céu, a água, e a costa se tornaram circunstâncias do barco, circunstâncias distintas que não são o barco[3]. Por esse motivo, a vida é a causa que nos faz viver; é a vida fazendo nós sermos nós mesmos. Ao andar de barco, a mente e o corpo, sujeito e objeto, são todos aspectos do barco; a terra inteira e todo espaço são aspectos do barco. Nós que somos vida, a vida que é nós, também é assim.
            O Mestre Zen Engo Kakugon disse: “Na vida a atividade total da existência se revela; na morte a atividade total da existência se revela”. Nós devemos investigar e compreender completamente essa declaração. O que se quer dizer por “completa investigação” é que o princípio de na vida a atividade total da existência se revela não tem nada a ver com começo ou fim; apesar de ser a terra inteira e todo o espaço, não só isso não obstrui a manifestação da atividade total da existência na vida, como também não obstrui a manifestação da atividade total da existência na morte. Quando a atividade total da existência se manifesta na morte, apesar de ser a terra inteira e todo o espaço, não apenas isso não obstrui a manifestação da atividade total da existência na morte, como também não obstrui a manifestação da atividade total da existência na vida. Por essa razão, a vida não obstrui a morte, a morte não obstrui a vida. A terra inteira e todo o espaço estão na vida e na morte também. Entretanto, não se trata de preencher o potencial de uma terra inteira e um todo espaço na vida e de preenchê-lo na morte também. Apesar deles[4] não serem um, não são diferentes; apesar de não serem diferentes, não são idênticos; apesar de não serem idênticos, não são múltiplos. Portanto, na vida existe uma miríade de fenômenos da manifestação da atividade total da existência, e na morte também existe uma miríade de fenômenos da manifestação da atividade total da existência. Existe ainda a manifestação da atividade total da existência naquilo que não é nem vida nem morte.
            Na manifestação da atividade total da existência existe a vida e existe a morte. Logo, a atividade total da vida e da morte deve ser como um homem dobrando e esticando o seu braço. Aqui contidos existem vários poderes e luzes espirituais manifestados. No momento da manifestação, pelo fato dela ser completamente ativada pela manifestação, nós vemos e compreendemos que não existe manifestação antes da manifestação. Entretanto, antes dessa manifestação há manifestação prévia da atividade total da existência. Apesar de existir a manifestação anterior da atividade total da existência, ela não bloqueia a presente manifestação da atividade total da existência. Por isso, tal visão e compreensão surge vigorosamente.


[1] Tradução baseada na versão inglesa de Thomas Cleary
[2] A palavra “Efetivação” é uma tradução do termo inglês “actualization”, que também poderia ser traduzido ao português como “Realização”. A idéia que está implicada aqui é a idéia de “tornar real, tornar vivo”. (N.T.)
[3] “Circunstâncias distintas que não são o barco” significa que essas circunstâncias (céu, água, etc) são diferentes do barco, mas não separadas dele. (N.T.)
[4] Aqui, “deles” se refere ao preenchimento do potencial na vida e na morte. (N.T.)

11 de julho de 2011

Os Oito Aspectos da Iluminação (HACHI DAININ KAKU)


Dogen Zenji
Tradução para o Português de Giovanni Dienstmann*


Os vários Budas foram todos pessoas iluminadas. A sua iluminação possui oito aspectos importantes. A realização destes oito aspectos é a base do Nirvana. Este foi o ensinamento final do nosso professor original, o Buda Shakyamuni, dado na noite de sua morte.

1. Ter poucos desejos
Ter poucos desejos significa não buscar extensivamente os objetos de desejo.
O Buda disse: “Praticantes! Vocês deveriam saber que aqueles que querem muitas coisas buscam tanto a fama quanto o ganho, e assim as suas aflições são muitas. Aqueles com poucos desejos, entretanto, nada procuram e não tem anseios, e assim não sofrem. Portanto vocês deveriam rapidamente se libertar da cobiça, tanto por este motivo como pelo motivo de que esta liberdade dará origem a várias virtudes. Além disso, as pessoas com poucos desejos estão livres da lisonja e da extraviação, e também não são escravizadas pelos seus próprios sentidos. Satisfeitos com pouco, eles não possuem preocupações ou medos, estando assim sempre calmos. Aqueles que tem poucos desejos tem o Nirvana.”

2. Satisfação
Satisfação significa estar contente com o que quer que se tenha.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês desejam se libertar do sofrimento vocês deveriam observar a satisfação. Estar satisfeito é ter um estado mental pacífico e feliz. Uma pessoa satisfeita é feliz mesmo que tenha que dormir no chão, enquanto que uma pessoa insatisfeita é infeliz mesmo vivendo em um palácio. A primeira é rica mesmo que seja pobre, a segunda é pobre ainda que seja rica. A pessoa satisfeita sente compaixão pela insatisfeita, pois esta é continuamente levada pelos cinco desejos[1].”

3. Apreciar a quietude
Isso significa viver uma vida solitária, separada de todas as perturbações mundanas.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês desejam desfrutar o silêncio e a felicidade do Nirvana, vocês deveriam deixar o clamor para trás e viver sem barulho em um local solitário. As pessoas que vivem em lugares quietos são respeitadas pelos deuses. Por isso vocês deveriam abandonar o seu apego ao ‘eu’ e aos ‘outros’ e viverem sozinhos, dessa maneira eliminando a raiz do sofrimento. Aqueles que gostam de multidões são perturbados por elas e sofrerão os seus aborrecimentos, da mesma forma em que uma árvore seca e quebra quando muito pássaros pousam sobre ela. Laços e apegos mundanos lhes afundam em um mar de dores, como um velho elefante atolado no lamaçal.”

4. Diligência
Cultivar virtudes sem interrupção é chamado diligência, pura e genuína, avançando sem olhar para trás.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês forem diligentes em seus esforços, nada será difícil. É como mesmo um pequeno fio d’água ser capaz de perfurar uma rocha se continuamente cai sobre ela. Entretanto, se vocês forem negligentes em sua prática e se suas mentes constantemente desanimarem, isso será como friccionar pauzinhos para produzir fogo mas parar antes que eles fiquem quentes – pode algum bom resultado ser esperado disso?”

5. Plena Atenção
Conservar os ensinamentos sem esquecimento é chamado de plena atenção, e também de “lembrança perseverante”.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês procuram um bom mestre e protetor, nada se compara à plena atenção. Aqueles que mantêm a plena atenção não são invadidos pelas aflições e permanecem livres de várias ilusões. Portanto, vocês deveriam se manter plenamente atentos, pois aqueles que perdem a plena atenção perdem as virtudes e seus méritos. Se vocês mantiverem a plena atenção, permanecerão ilesos mesmo quando cercados pelos desejos.”

6. Meditação
Meditação significa permanecer no Darma sem distração, com uma mente imperturbável.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês concentrarem a mente ela entrará em um estado de estabilidade, e assim vocês poderão compreender as características dos fenômenos surgindo e desaparecendo no mundo. Fazendo isso suas mentes permanecerão imperturbáveis. Assim como aqueles que querem evitar inundações constroem uma barragem, assim também o praticante cultiva a meditação para evitar que a água da sabedoria se perca.”

7. Sabedoria
Desenvolvendo a aprendizagem, aplicação e compreensão, a realização é a sabedoria.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês tiverem sabedoria, vocês não se apegarão aos desejos. Vocês devem examinar a si mesmos continuamente, sem permitir nenhum descuido, pois este é o caminho da iluminação. Aqueles que não praticarem isto não são monges nem leigos – não há como se referir a eles. A verdadeira sabedoria é como barco seguro para atravessar o oceano da doença, velhice e morte; como uma tocha luminosa na escuridão da ignorância; como um bom remédio para todas as doenças; e como um machado afiado para cortar a árvore das ilusões. A sabedoria resultante do ouvir, refletir e praticar o Darma pode assim ser usada para aumentar o seu mérito no Caminho. Se alguém chegar a possuir a luz da sabedoria, poderá ver a Verdade com os seus próprios olhos.”

8. Abster-se das conversas vãs
Abster-se das conversas vãs significa desapegar-se da discriminação arbitrária; quando nós compreendemos a realidade plenamente, nós não mais nos envolvemos em conversas fúteis.
O Buda disse: “Praticantes! Se vocês se entregarem a diversos tipos de conversas fúteis, sua mente será perturbada. Daí, mesmo se vocês se tornarem monges, não alcançarão a iluminação. Por isso, vocês devem imediatamente abandonar esse tipo de conversas. Apenas aqueles que fazem isso podem experimentar a tranqüilidade e bem-aventurança do Nirvana.”

Estes são, então, os oito aspectos da iluminação. Cada um deles contêm os outros oito, então são sessenta e quatro. Falando de forma mais ampla, se você os desdobrar, eles se tornam infinitos; se os resumir, são sessenta e quatro. Este foi o último ensinamento do nosso grande mestre Buda Shakyamuni,  a essência do Mahayana, pronunciado por volta da meia-noite do dia 15 de fevereiro. Daí em diante ele permaneceu em silêncio até a sua morte.
O Buda disse, concluindo: “Praticantes! Sempre busquem com todo o coração pelo Caminho da Libertação, já que todas as coisas no mundo, móveis e imóveis, são formas instáveis sujeitas à morte. Parem agora e não falem mais. O tempo está acabando e eu vou atravessar para a extinção. Este é o meu último ensinamento.”
Portanto, os discípulos do Buda definitivamente devem estudar esses princípios. Aqueles que não estudam e praticam esses ensinamentos não são discípulos do Buda. Esses ensinamentos são Tesouro do Olho do Darma Verdadeiro, o coração do Nirvana. Apesar disso, entretanto, existem hoje muitos que ignoram estes ensinamentos, e poucos que estão consciente deles. Aqueles que não entraram em contato com esses ensinamentos estão nessa situação devido à influencia de demônios e também devido à falta de ações virtuosas no passado.
Antigamente, nos períodos do verdadeiro Darma e da imitação do Darma, todos os Budistas conheciam e praticavam estes oito aspectos. Hoje em dia, entretanto, é difícil encontrar um ou dois entre mil monges que conheça estes ensinamentos. Que pena – a decadência desta nossa era degenerada é mesmo inimaginável. Devemos nos apressar para apreender e praticar esses ensinamentos já que ainda é possível encontrá-los. Não sejam negligentes!
É difícil encontrar os ensinamentos do Buda mesmo em incontáveis éons[2]. É igualmente difícil nascer como um ser humano. Nós não só tivemos a sorte de nascer como seres humanos, como também a sorte de nascer em um local onde é possível ouvir os ensinamentos do Buda. Aqueles que morreram antes do Buda também não ouviram esses ensinamentos. Graças ao poder das nossas ações virtuosas no passado, entretanto, nós podemos ouvi-los e estudá-los. Agora, nós devemos estudar e desenvolver estes oito aspectos vida após vida, e assim certamente alcançaremos a insuperável iluminação. Se, além disso, nós os expusermos a todos os seres senscientes, então nós mesmos não seremos diferentes do Buda Shakyamuni.
(Escrito em Eiheiji, em 6 de janeiro de 1253)
       



* Fiz esta tradução adaptada baseado na tradução para o inglês de Thomas Cleary e de Yuho Yokai, em fevereiro de 2004 (N.T.)

      



[1] Segundo a doutrina budista clássica, os Cinco Desejos são: comida e bebida; sono; sexo; riquezas e bens; fama. (N.T.)
[2] Éons são períodos incontavelmente longos de tempo, durando milhões e milhões de anos. (N.T.)

9 de julho de 2011

Este momento é o Nirvana.


Este momento é o Nirvana.
Uma Palestra de Saikawa Roshi
Curitiba – Fevereiro de 2006


Muitas pessoas acham que o budismo é uma forma de religião, mas o budismo e é um pouco diferente de religião. Eu ouvi dizer que religião significa reconectar, mas em japonês religião  chama-se shujo, que são dois caracteres chineses. Shu significa origem ou raiz e jo significa ensinamento ou a ação de reviver. Então na concepção japonesa, a religião é como um ensinamento ou um ato de reviver a raiz, ou a origem, ou o verdadeiro eu (self). Assim shujo não é necessário para as pessoas felizes, apenas para as pessoas que estão sofrendo, que estão tristes ou em agonia. Existem muitas formas de se tornar feliz e o zen é uma das escolas ou correntes que vai lhe mostrar o caminho para tornar-se feliz vendo o seu verdadeiro eu. Você se torna feliz vendo o seu verdadeiro eu. Portanto, nós fazemos o zazen como o Buda Shakyamuni fez e atingimos o ponto do verdadeiro eu ou despertamos para o verdadeiro eu.
Quando o Buda Shakyamuni atingiu a iluminação, imediatamente anunciou: “ que maravilha, que milagre, eu e a grande terra com todos os seres atingimos a iluminação simultaneamente!” Esta primeira afirmação é muito importante para nós; “ que maravilha, que milagre, eu e a grande terra com todos os seres simultaneamente iluminados!” Esta afirmação significa que nós somos, na origem, totalmente livres e felizes. É apenas por causa da ilusão, ou da forma dualística de pensar que, como num sonho, achamos que não somos felizes. Mas se você vir o seu verdadeiro eu, você pode salvar-se por você mesmo. Você não precisa dos outros para ajudá-lo. Apenas você pode salvar-se vendo o seu verdadeiro eu.
Eu não vou mudar de assunto, mas vou falar de uma maneira diferente. A história do ser humano tem sido a de colocar o dualismo dentro da cabeça da criança à medida que ela vai crescendo. Os pais, as mães, os irmãos e os parentes ensinam o dualismo para a criança dizendo coisas como: você e o outro, você e o mundo, esquerda, direita, em cima, embaixo, bom, mau, grande, pequeno, rápido, lento; estes tipos de palavras, ou linguagem é o que os adultos têm  ensinado às crianças, e esta é a história do ser humano. Portanto, estas crianças, quando crescerem, jamais duvidarão da palavra, ou linguagem. Elas acharão que as coisas que as palavras significam, realmente existem. Por exemplo: direita. Quando eu digo direita, direita é este lado aqui. Este é o lado direito para mim, mas é o lado esquerdo para vocês. Se eu coloco meu dedo para cima desta maneira, talvez as pessoas no Japão ou do outro lado do mundo, digam que está para baixo. Para os chineses talvez deste jeito seja para cima e para os hindus talvez seja para cima também. Quando todos estão achando que assim é para cima então o “para cima” existe. Se apenas o “para cima” existe, então o “para baixonão existe. Então nem mesmo o “para cima” existe, porque para se ter a idéia de “para cima  você precisa da idéia do “para baixo”, consciente ou inconscientemente.
Portanto, a realidade está além das palavras ou das idéias. Direita e esquerda é a mesma coisa, bom e mau é a mesma coisa. Coisas boas para o Sr. Bush são más para o Tio Sam. O Este momento é o Nirvana. - Veiculado em 13/11/2006