18 de julho de 2011

A Atividade Total da Existência - Dogen Zenji

Introdução de Thomas Cleary


Essa dissertação  lembra fortemente o ensinamento central da escola Kegon: a originação interdependente, e seus corolários lidando com a interprenetração da existência e da vacuidade, unidade e multiplicidade.
A palavra zenki é composta por dois elementos: zen, significando “todo”, total ou completo; ki  possui vários significados, sendo que aqueles relevantes para esse caso incluem “mecanismo”, no sentido de maquinaria, potencial, ímpeto, força vital, e fluxo [atividade] da natureza. Ki refere-se aos fenômenos no seu aspecto dinâmico, e ao ponto vital ou dinâmico que sustenta e é revelado pela coexistência fenomênica ativa. Em termos Kegon, Ki inclui tanto o sentido de fenômenos como o de princípio, “fenômenos” sendo as coisas interdependentes, e “princípio” sendo a interdependência em si mesma. Zen refere-se à inclusividade e “penetratividade” de ki em seus dois aspectos. Traduzimos zenki como “a atividade total da existência”  para comunicar a noção da inclusão de toda existência e a noção da dinâmica total que subjaz às manifestações da existência.
No caso número sessenta e um do clássico Zen “Registro do Penhasco Azul” lê-se: “Se um único átomo é estabelecido, a nação floresce; se um único átomo não é estabelecido, a nação perece.” Esta dissertação de Dogen pode ser vista como sendo toda centrada sobre uma reformulação desse tema: “Na vida a atividade total da existência é manifestada; na morte a atividade total da existência é manifestada”, ou, colocando a mesma passagem de outra maneira, “A vida é a manifestação da atividade total da existência; a morte é a manifestação da atividade total da existência.”
Em termos da equação existência-vacuidade, do ponto de vista da existência (representado pelos termos “estabelecer” e “vida”) tudo o que é existe, enquanto que do ponto de vista da vacuidade (“não estabelecido” e “morte”) tudo é vazio. A concorrência da existência e da vacuidade não se dá como se fossem entidades separadas, mas sim como diferentes aspectos ou perspectivas da mesma totalidade.
A passagem do “Registro do Penhasco Azul” citada acima alude à doutrina Kegon que afirma que os fenômenos não existem individualmente, mas interdependentemente, e que a multiplicidade depende da unidade assim como a unidade depende da multiplicidade. Um refinamento desse princípio na filosofia Kegon é chamado de “o mistério do principal e dos satélites”: isso significa que qualquer elemento de uma cadeia causal pode ser visto como eixo, ou “principal”, sobre o qual todos os outros elementos se tornam condições cooperativas, ou “satélites” – portanto, cada elemento é ao mesmo tempo “principal” e “satélite” em relação a todos os outros elementos. É a mutualidade, a complementariedade desses elementos que os fazem ser funcionalmente o que são. Dogen representa esta idéia comparando a vida ao andar de barco – nós não somos nada sem o barco, e, ainda, é o nosso andar no barco que o torna efetivamente um “barco”. Além disso, “o barco é o mundo – até mesmo o céu, a água, e a costa são circunstâncias do barco...Toda a terra e todo espaço são aspectos da vida do barco.”
A distinção entre existência e vacuidade, a não contradição e interpenetração mútua entre existência e vacuidade, e com isso a transcendência da existência e da vacuidade – esses são os passos tradicionais da dialética do Budismo Mahayana. Nesta dissertação eles são apresentados por Dogen com a sua maneira sutil, quase vedada de se expressar, obviamente para induzir o leitor a buscar esses insights através da sua própria contemplação pessoal. A visão última da totalidade, na qual o todo e os indivíduos promovem um ao outro – o ápice da metafísica Budista Kegon – é um dos temas fundamentais dos escritos filosóficos de Dogen Zenji, um tema a ser encontrado com tempo e repetidas vezes em seus vários aspectos. Nesta dissertação ele é transmitido da maneira mais sucinta, valendo representar a filosofia Zen Budista.



Texto de Dogen Zenji

            O Grande Caminho dos Budas, em sua realização, é uma passagem para a liberdade, é efetivação. Essa passagem para a liberdade, em um sentido, é que a vida passa através da vida para a liberdade, e a morte também passa através da morte para a liberdade. Portanto, existe o deixar a vida e morte, existe o entrar na vida e morte; ambos são o Grande Caminho da realização. Existe o abandonar a vida e morte, existe o atravessar a vida e morte; ambos são o Grande Caminho da realização.
            Efetivação[2] é vida, vida é efetivação. Quando essa efetivação está ocorrendo, é sem exceção a completa efetivação da vida, é a completa efetivação da morte. Essa atividade central pode causar a vida e morte. No momento preciso da efetivação dessa atividade, ela não é necessariamente grande, não é necessariamente pequena, não é “penetra em todas as coisas”, não limitada, não extensa, não curta.
            A vida presente está nessa atividade, essa atividade está na vida presente. A vida não é vir, não é ir, nem presente, nem  “vindo-a-ser”. No entanto, a vida é a manifestação da atividade total da existência, a morte é a manifestação da atividade total da existência . Saiba que dentre as infinitas coisas existentes em nós mesmos, há a vida e morte. Pensem calmamente: essa vida atual e a miríade de coisas estão juntas ou não? Não existe nada em absoluto, nem mesmo um único tempo ou um único fenômeno, que não seja um com a vida. Seja mesmo uma única coisa, uma única mente, nada está separado da vida.
            A vida é como o andar de barco: apesar de no barco nós manejarmos a vela, o leme e o mastro, é o barco que nos carrega, e nós não somos nada sem o barco. Andando no barco, nós fazemos com que o barco seja um barco. Nós devemos meditar sobre esse ponto preciso. Neste momento, o barco é o mundo – até mesmo o céu, a água, e a costa se tornaram circunstâncias do barco, circunstâncias distintas que não são o barco[3]. Por esse motivo, a vida é a causa que nos faz viver; é a vida fazendo nós sermos nós mesmos. Ao andar de barco, a mente e o corpo, sujeito e objeto, são todos aspectos do barco; a terra inteira e todo espaço são aspectos do barco. Nós que somos vida, a vida que é nós, também é assim.
            O Mestre Zen Engo Kakugon disse: “Na vida a atividade total da existência se revela; na morte a atividade total da existência se revela”. Nós devemos investigar e compreender completamente essa declaração. O que se quer dizer por “completa investigação” é que o princípio de na vida a atividade total da existência se revela não tem nada a ver com começo ou fim; apesar de ser a terra inteira e todo o espaço, não só isso não obstrui a manifestação da atividade total da existência na vida, como também não obstrui a manifestação da atividade total da existência na morte. Quando a atividade total da existência se manifesta na morte, apesar de ser a terra inteira e todo o espaço, não apenas isso não obstrui a manifestação da atividade total da existência na morte, como também não obstrui a manifestação da atividade total da existência na vida. Por essa razão, a vida não obstrui a morte, a morte não obstrui a vida. A terra inteira e todo o espaço estão na vida e na morte também. Entretanto, não se trata de preencher o potencial de uma terra inteira e um todo espaço na vida e de preenchê-lo na morte também. Apesar deles[4] não serem um, não são diferentes; apesar de não serem diferentes, não são idênticos; apesar de não serem idênticos, não são múltiplos. Portanto, na vida existe uma miríade de fenômenos da manifestação da atividade total da existência, e na morte também existe uma miríade de fenômenos da manifestação da atividade total da existência. Existe ainda a manifestação da atividade total da existência naquilo que não é nem vida nem morte.
            Na manifestação da atividade total da existência existe a vida e existe a morte. Logo, a atividade total da vida e da morte deve ser como um homem dobrando e esticando o seu braço. Aqui contidos existem vários poderes e luzes espirituais manifestados. No momento da manifestação, pelo fato dela ser completamente ativada pela manifestação, nós vemos e compreendemos que não existe manifestação antes da manifestação. Entretanto, antes dessa manifestação há manifestação prévia da atividade total da existência. Apesar de existir a manifestação anterior da atividade total da existência, ela não bloqueia a presente manifestação da atividade total da existência. Por isso, tal visão e compreensão surge vigorosamente.


[1] Tradução baseada na versão inglesa de Thomas Cleary
[2] A palavra “Efetivação” é uma tradução do termo inglês “actualization”, que também poderia ser traduzido ao português como “Realização”. A idéia que está implicada aqui é a idéia de “tornar real, tornar vivo”. (N.T.)
[3] “Circunstâncias distintas que não são o barco” significa que essas circunstâncias (céu, água, etc) são diferentes do barco, mas não separadas dele. (N.T.)
[4] Aqui, “deles” se refere ao preenchimento do potencial na vida e na morte. (N.T.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário