25 de julho de 2011

Uma Jóia Brilhante - (IKKA MYOJU) - Dogen Zenji


Tradução para o Português de Giovanni Dienstmann




Introdução de Thomas Cleary


Esta dissertação enfatiza a unidade total do ser, um tema persistente dos escritos e declarações de Dogen Zenji. Ela é baseada em uma famosa frase de um mestre dos tempos antigos, que diz que o mundo inteiro, todos os mundos, ou o universo inteiro, é “uma jóia brilhante”.
Quando um discípulo perguntou ao mestre sobre como entender essa declaração, ele disse, “O que isso tem a ver com entendimento?” ou “Por que você quer entender?” ou “Qual é a utilidade do entendimento?”. Cada um desse pontos é algo sobre o quê vale a pena refletir, mas a mensagem fundamental aplicável à qualquer maneira que nós leiamos isso parece ser a de que a unidade do ser é uma realidade, quer nós a compreendamos conscientemente ou não; o ser não se torna unidade através da compreensão. Além disso, o entendimento conceitual, com a sua inerente discriminação, pode facilmente obscurecer essa unidade ao invés de revelá-la, e nós acabaríamos “perdendo a floresta pelas árvores”.
Isso não significa, no entanto, que a única alternativa é a ignorância: na história, quando o discípulo devolve ao mestre a mesma resposta no dia seguinte, o mestre faz uma observação sugerindo que o discípulo está se apegando ao não-entendimento, ou simplesmente se apoiando em um chavão no lugar da verdadeira compreensão. Ao longo desta dissertação Dogen mostra como evitar perder o todo pelas partes, enquanto ao mesmo tempo ainda apreciar a infinita variedade das partes como “adornos” do todo, como “luzes” da “jóia única”.


Texto de Dogen Zenji


O grande mestre Gensha tinha o nome religioso de Shibi; o seu sobrenome leigo era Sha. Na sua vida leiga ele gostava de pescar e costumava transitar o seu barco no rio Nandai, seguindo os caminhos dos pescadores. Ele deve ter pego, sem expectativa, o peixe dourado que surge por si mesmo sem ser pescado. No início da era Kantsu da dinastia Tanga (860-873), ele repentinamente desejou deixar o mundo; então ele deixou o seu barco e foi viver dentro das montanhas. Naquela época ele tinha trinta anos. Realizando o sofrimento do mundo transitório, ele percebeu o elevado valor do Caminho do Buda. Finalmente, ele escalou a Montanha do Pico Nevado, encontrou o Mestre Zen Seppo, e praticou o Caminho noite e dia.
Certa vez, a fim de estudar o Zen profundamente, ele pegou sua mochila e foi sair da montanha, mas no caminho ele bateu seu pé em uma rocha, e, como começou a sangrar dolorosamente, ele de repente teve um poderoso insight e disse: “Este corpo não existe – de onde vem a dor?”. Então ele voltou para ver Seppo. Seppo lhe perguntou: “Quem é o asceta Shibi?” Gensha disse: “Eu nunca ouso enganar as pessoas”. Seppo gostou muito dessa resposta, e disse: “Quem não tem essa afirmação? Quem pode pronunciar isso?” Seppo perguntou, ainda: “Asceta Shibi, por que você não viaja e estuda?” Ele respondeu: “Bodhidharma não veio da China, o segundo patricarca não foi à Índia[1].” O mestre Seppo lhe louvava por essa afirmação. Como Gensha tinha sido um pescador até então, ele nunca tinha visto as escrituras e tratados nem em sonhos, mas como a profundidade de sua aspiração era suprema, seu espírito resoluto superava o dos outros. Seppo o louvava como sendo um modelo para os outros discípulos. Ele costumava se vestir sempre com o mesmo manto e por isso seu manto estava todo remendado. Ele usava papel e plantas como roupa de baixo. Ele não buscou nenhum outro mestre além de Seppo. Todavia, ele alcançou o poder de herdar o caminho de seu mestre.
Depois dele ter finalmente alcançado o Caminho, ele dizia às pessoas: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante”. Um monge lhe perguntou: “Eu ouvi dizer que você tem um dito, que o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como os estudantes devem entender isso?” O mestre disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?”  No dia seguinte o mestre perguntou àquele monge: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como você entende isso?” O monge lhe respondeu: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?” . O mestre replicou: “Eu sabia que você andava vivendo em uma caverna fantasmagórica na montanha da escuridão.”[2]
Esse provérbio, que o mundo inteiro nas dez direções é uma jóia brilhante, começou com Gensha. A mensagem essencial é que o universo inteiro não é vasto, nem pequeno, nem redondo, nem quadrado, nem equilibrado e correto, nem animado e ativo, nem se sobressaindo. Além disso, como não é nascimento e morte, ir e vir, é nascimento e morte, ir e vir. Sendo assim, tendo passado daqui, agora vem daqui. Fazendo uma investigação completa disso, devemos vê-lo como sendo sem peso, devemos descobrir que é sincero, com uma só mente.
As dez direções é o não-parar de perseguir as coisas como si-mesmo, perseguir o si-mesmo como coisas. Expressar que quando surgem as emoções a sabedoria é obstruída como sendo obstrução é virar a cabeça, mudar a face, é relatar eventos, encarar a situação. Porque perseguir o eu como sendo as coisas é as dez direções que é o não-parar. Como trata-se do princípio do começar, há superabundância na mestria do eixo da função. É uma jóia brilhante, que apesar de ainda não ser um nome, é uma expressão. Mas isso já foi tomado como sendo um nome. Quanto a uma jóia brilhante, ela é mesmo dez mil anos; como se estende ao longo de toda a antiguidade, e ainda não chegou, se estende pelo presente, tendo chegado. Apesar de existir o presente do corpo e o presente da mente, trata-se de uma jóia brilhante. Não é as plantas e arvores daqui e dali, nem as montanhas e rios dos céus e da terra – é uma jóia brilhante.
Como podem os estudantes entender isso? Quanto a essa declaração, mesmo que pareça que o monge estava usando a consciência ativa, trata-se da grande função manifestando o ser uma grande norma. Indo adiante, nós deveríamos fazer com que um metro de água, um metro de onda[3] apareça fortemente. É isso que é chamado de dez metros de jóia, dez metros de brilho. Para expressar o que ele quis dizer, Gensha disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com entendimento?” Esse ditado é uma expressão dos Budas sucedendo aos Budas, mestres Zen sucedendo aos mestres Zen, Gensha sucedendo a Gensha. Ao tentar escapar da sucessão, apesar de não significar que “não há lugar para onde escapar”, mesmo se nós claramente escaparmos por hora, enquanto houver o aparecimento da expressão, trata-se do encobrimento [ou inclusão] do tempo pela manifestação.
No dia seguinte Gensha perguntou ao monge: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – como você entende isso?” O que ele está dizendo é, ontem eu falei um princípio definido; hoje, usando uma segunda camada, ele transpira energia[4] hoje eu falo um principio indefinido – ele está afastando o ontem, mexendo a cabeça e rindo. O monge disse: “O mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante – o que isso tem a ver com o entendimento?”. Nós podemos chamar isso de perseguir o ladrão usando o cavalo do ladrão. Segundo a explicação de um antigo Buda, isso é agindo dentro de diferentes espécies[5]. Por um tempo você deveria virar a luz para dentro e refletir – quantos níveis de o que isso tem a ver com o entendimento existem? Tentando responder, apesar de vocês poderem dizer que é sete panquecas de leite, sete panquecas de vegetais, esse é o ensinamento e prática do sul de Shô, norte de Tan[6].
Gensha disse: “Eu sabia que você andava vivendo em uma caverna fantasmagórica na montanha da escuridão”. Saiba que cara de sol, cara de lua[7] jamais mudou desde a mais remota antiguidade. Cara de sol surge junto com cara de sol, e cara de lua surge junto com cara de lua, então se no sexto mês você pensa que é a hora certa, você não pode dizer que a sua natureza está madura[8]. Logo, o início ou não-início dessa jóia brilhante não tem ponto de referência – é o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante. Ele não diz duas ou três – o corpo inteiro é um único olho da verdade, o corpo inteiro é a corporificação da realidade, o corpo inteiro é uma frase, o corpo inteiro é luz, o corpo inteiro é o corpo inteiro. Ao ser corpo inteiro, o corpo inteiro não possui nenhuma obstrução – ele é perfeitamente redondo, ele rola suavemente. Como as qualidades da jóia brilhante são assim manifestas, existe Kannon e Miroku[9] do presente vendo formas e ouvindo sons, existem os velhos Budas e novos Budas que aparecem fisicamente para expor a verdade. Neste momento, quer esteja pendurado no céu ou dentro da nossa roupa, ou debaixo do nosso nariz, ou dentro do topete – em cada caso é o mundo inteiro nas dez direções é uma única jóia brilhante.
Pendurar dentro da roupa é considerado a maneira certa – não diga que você irá pendurá-la fora da roupa. Pendurar dentro do topete ou debaixo do nariz é considerado a maneira certa – não tente usá-la fora do topete ou do nariz. Tem um amigo próximo que lhe dá a jóia enquanto você está intoxicado com vinho – para um amigo próximo a jóia deve ser dada. No momento em que a jóia é pendurada, sempre se está intoxicado com vinho. Sendo assimdade, é a jóia brilhante que é o mundo inteiro nas dez direções. Dessa maneira, apesar de parecer que ela muda de cara, vira ou não vira, ainda, é uma jóia brilhante. É precisamente o saber que a jóia sempre foi assim que é em si mesmo a jóia brilhante. A jóia brilhante tem som e cor que parecem assim. Em já se estando na assimdade, no que diz respeito à preocupação de que nós não somos a jóia brilhante, nós não deveríamos suspeitar que isso não é a jóia. Preocupação e dúvida, apego e rejeição, ação e inação nada mais são do que visões temporárias de pequena escala. Na verdade, elas apenas estão se assemelhando à pequena escala. Tais luzes e brilhos da jóia brilhante são ilimitados – não é encantador? Cada oscilação, cada feixe, cada brilho, cada luz é uma qualidade do mundo inteiro nas dez direções. Quem pode afastá-los? Não há lançar uma telha no mercado[10]. Não se preocupe sobre virar vítima ou ser ofuscado[11] pela lei de causa e efeito das existências mundanas – a desimpedida jóia brilhante original que é completamente verdadeira é o rosto; a jóia brilhante é os olhos.
Entretanto, para você e para mim, o “pensar sobre tudo, não pensar sobre nada” que não sabe o que é e o que não é a jóia brilhante pode ter juntado forragem de claridade; mas, se por meio da declaração de Gensha nós pudermos ouvir e compreender com são o corpo e a mente que são a jóia brilhante, veremos que a mente não é o si-mesmo – assim, quem iria preocupar-se em se apegar ou rejeitar o vir-a-ser e a extinção como sendo a jóia brilhante ou como não sendo a jóia brilhante? Mesmo se nos preocupamos e duvidamos, isso não significa que não é que isso não é a jóia brilhante. Como não é uma ação ou um pensamento que é causado por algo existindo que não seja a jóia brilhante, o fato é que andar para frente e para trás na caverna fantasmagórica na montanha da escuridão é simplesmente uma jóia brilhante.
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(Tradução baseada na versão inglesa de Thomas Cleary.)



[1] A implicação disto é que a realidade é onipresente.
[2] “Caverna fantasmagórica na montanha da escuridão” geralmente é usada no Zen para referir-se ao estar aferrado na quietude, na imobilidade, na concentração sem forma, no não-saber. Também é chamado de “apegar-se a uma visão unilateral do vazio”, ao vazio niilista. Essa é a utilização dessa metáfora em relação à meditação. Além disso, ela também é usada para referir-se ao apego a conceitos estereotipados.
[3] “Água” representa a essência, a vacuidade, o númeno; “ondas” representa as características, as aparências, os fenômenos. “Um metro de água, um metro de onda” refere-se à realização da perfeita integração entre vacuidade e existência.
[4] “Transpira energia” ou “exibe vida” é usado para referir-se ao funcionamento ativo ou flexibilidade, que significa não ficar preso em uma única posição ou lugar-comum.
[5] “Agindo dentro de diferentes espécies” é um termo técnico da escola Soto Zen chinesa e basicamente tem o significado de agir no mundo em qualquer forma que seja apropriada. Sozan (Ts’ao Shan), um dos progenitores da escola, escreveu: “A assimilação dos bodhisatvas a várias espécies significa primeiro entender a si mesmo, e depois disso entrar nos diferentes tipos de nascimentos para libertar os seres; apesar de já terem realizado o Nirvana, eles não abandonam as criaturas na vida e morte, mas sim fazem o voto de ajudar a todos os seres a atingir a Budeidade”. Sozan discute vários tipos ou aspectos de “agir dentro de várias espécies”, mas em geral “diferentes espécies” significa o mundo da diferenciação, todos os tipos de formas e estados.
[6] “Sete panquecas de leite, sete panquecas de vegetais” significa “tudo”, e “sul de Shô, norte de Tan” significa “todos os lugares (comparar com o caso 18 do Registro do Penhasco Azul). Tudo é a “jóia brilhante”, todas as coisas em todos os lugares é assimdade – descrições e entendimentos específicos tem a sua utilidade, mas são fragmentários por natureza e não abrangem o todo. Entretanto, como esse princípio se estende à todos os entendimentos específicos, como enfatiza a filosofia Kegon, o um é o todo e o todo é um. Na sinédoque Zen, qualquer objeto particular pode ser empregado para representar todo o ser.
[7] Comparar com o caso 3 do Registro do Penhasco Azul.
[8] Um antigo mestre disse: “Cada dia é um bom dia”. Comparar com o caso 6 do Registro do Penhasco Azul.
[9] Kannon é Avalokitesvara, o bodhisatva da compaixão; Miroku é Maitreya, o bodhisatva da generosidade.
[10] “Lançar uma telha no mercado” para conseguir uma peça de jade em troca significa dar pouco para ganhar muito. Um dia alguém expôs duas linhas de um verso poético em um templo onde um grande poeta iria visitar, esperando assim provocar o poeta a terminar o verso. As linhas escritas pelo porta eram de qualidade superior, e por isso dizem que o homem que escreveu as duas primeiras linhas “lançou uma telha para conseguir jade”.
[11] Em uma história Zen muito conhecida, um velho homem disse ao mestre Zen Hyakujo que ele tinha sido um mestre no passado, mas que quando um monge tinha lhe perguntado se alguém que atingiu altos níveis meditativos ainda era sujeito ao carma, ele respondera que não, e por causa disso havia sido condenado a encarnar-se como uma “raposa selvagem”. Então o velho homem fez a mesma pergunta a Hyakujo, que respondeu que alguém que atingiu altos níveis meditativos “não é ofuscado pela lei de causa e efeito”.

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