30 de setembro de 2012

A recompensa da prática

    
Estamos sempre tentando levar nossa vida da infelicidade para a felicidade. Ou, poderíamos dizer, desejamos nos mudar de uma vida de lutas para uma de alegria. Mas essas coisas não são as mesmas: sair da infelicidade para a felicidade não é mesmo que sair da luta para a alegria. Algumas terapias buscam levar-nos de um eu infeliz para um eu feliz. A prática zen, porém, (e, talvez, algumas outras disciplinas e terapias) pode ajudar-nos a sair do eu infeliz para o não-eu, que é a alegria. 
     
Ter um "eu" significa que somos autocentrados. Ser autocentrado -e, portanto, em oposição a coisas externas -é ser ansioso e ficar preocupado consigo mesmo, é reagir de imediato com aspereza, quando o meio externo se nos opõe. Ficamos aborrecidos facilmente. Sendo autocentrados, ficamos muitas vezes confusos. É assim que a maioria das pessoas vivencia a própria vida. 

Embora não estejamos familiarizados com o lado oposto ao eu (não-eu), tentemos pensar que espécie de vida poderia ser a do não-eu. Não-eu não significa desaparecer do planeta ou deixar de existir. Não é nem estar autocentrado, tampouco centrado no outro; apenas, é estar centrado. A vida do não-eu não está centrada em coisa alguma em particular, mas em todas as coisas; ou seja, está desapegada e, por isso, as características de um eu não podem aparecer. Não somos ansiosos, ou preocupados, não nos irritamos com facilidade, não nos aborrecemos a todo instante, e, principalmente, nossa vida não tem o sabor característico da confusão. Por isso, ser o não-eu é alegria. Não apenas isso. O não-eu, por não se opor a nada, é benéfico a tudo. 
     
Para a absoluta maioria, porém, a prática precisa acontecer dentro de uma estratégia organizada, numa dissolução implacável do eu. O primeiro passo que devemos dar é nos mudar da infelicidade para a felicidade. Por quê? Porque não há de modo algum meio pelo qual a pessoa infeliz -perturbada consigo ou com os outros, ou com as situações -possa ser a vida do não-eu. Assim, o primeiro estágio da prática deveria ser o nosso deslocamento da infelicidade para a felicidade, e os primeiros anos de zazen são principalmente dedicados a esse movimento. Para algumas pessoas, uma terapia inteligente pode ser proveitosa nessa etapa. Entretanto, as pessoas são muito diferentes entre si e não podemos generalizar. No entanto, não podemos (ou não devemos) tentar saltar este primeiro movimento de uma relativa infelicidade para uma relativa felicidade. 
     
Por que digo "relativa" felicidade? Independente do quanto podemos sentir que nossa vida é "feliz", se ela estiver baseada num eu, não podemos ter uma resolução final. Por que não pode haver uma resolução final para uma vida que se baseia num eu? Porque tal vida está fundamentada numa premissa falsa, a de que somos um eu. Sem exceção, todos nós acreditamos nisso. Toda prática que interrompa a adaptação provisória do eu é, em última análise, insatisfatória. 
    
Compreender a própria natureza como não-eu –um Buda -é fruto do zazen e do caminho da prática. A coisa importante (já que essa é a única realmente satisfatória) é seguir esse caminho. Enquanto nos debatemos com a questão de nossa verdadeira natureza -eu ou não-eu- a base toda de nossa vida precisa mudar. Para travar de modo adequado essa batalha, todo sentimento, todo propósito, toda orientação da vida devem ser transformados. Quais poderiam ser os passos dessa prática? 
     
O primeiro, como já mencionei, é a saída da relativa infelicidade para a relativa felicidade. Na melhor das hipóteses, é um feito instável, que facilmente se perde. Mas devemos ter um certo nível de felicidade relativa e de estabilidade para nos envolvermos com uma prática séria. Então, podemos estar em condições de tentar o estágio seguinte: filtrar com inteligência e persistência as várias características da mente e do corpo através do zazen. Começamos a notar nossos padrões; começamos a observar nossos desejos; nossas necessidades; nossos impulsos egóicos; e começamos a perceber que esses padrões, esses desejos, esses vícios são o que chamamos de eu. Conforme nossa prática continua, começamos a entender o vazio e a impermanência desses padrões e acreditamos que podemos abandoná-los. Não precisamos tentar abandoná-los; eles apenas se dissolvem lentamente com o tempo, pois, quando a luz da conscientização incide no que quer que seja, diminui o falso e aumenta o verdadeiro; e nada incandesce mais essa luz do que um zazen inteligente, realizado todos os dias e nos sesshins. Com o desaparecimento de alguns desses padrões, o não-eu -que está sempre presente -pode começar a manifestar-se e com ele aumentam a paz e a alegria ao mesmo tempo. 
     
Esse processo, embora fácil de ser mencionado, é às vezes assustador, desanimador, desencorajador; tudo aquilo que pensávamos era nós mesmos durante tantos anos, e está sob ataques. Podemos sentir um medo imenso, enquanto essa transição está acontecendo. Pode parecer encantadora enquanto falamos sobre ela, mas, ao pô-la em prática pode ser horrível.
      
No entanto, para quem tiver paciência e determinação em sua prática, a alegria aumenta; a paz aumenta; aumenta a capacidade de viver de modo benéfico e compadecido. E a vida, que talvez sofra com os caprichos das circunstâncias externas, sutilmente se altera. Essa vida que se transforma devagar não é, contudo, isenta de problemas. Eles estarão presentes. Durante um certo período nossa vida pode ficar pior do que antes, à medida que pomos a nu o que antes mantivera-se encoberto. Mas, mesmo quando isso acontece, temos uma sensação de crescente saúde interior e compreensão, uma sensação de satisfação básica.
     
Para manter a prática através de dificuldades graves, devemos ter paciência, persistência e coragem. Por quê? Por causa de nosso costumeiro modo de viver em busca de felicidade, esforçando-nos para satisfazer desejos, e lutando para evitar dores mentais e físicas; a prática determinada é sempre solapada. Aprendemos na boca do estômago e não só com nosso cérebro que uma vida de alegria não está na busca da felicidade e, sim, no experimentar e simplesmente ser as circunstâncias de nossa vida, tais como são; não em satisfazer desejos pessoais, mas em satisfazer as necessidades da vida; não em evitar a dor, mas em sê-la quando necessário. É tarefa grande demais? Difícil demais? Pelo contrário, é o caminho mais fácil.
    
Uma vez que só podemos viver nossa vida através de nossa mente e corpo, não há quem não seja um ser psicológico. Temos pensamentos, esperanças, podemos ser feridos ou ficar aborrecidos. Porém, a solução real deve vir de uma dimensão que seja radicalmente diferente da dimensão psicológica. A prática do desapego, o crescimento do não-eu, é a chave do entendimento. Por fim, compreendemos que não há caminho, não há meio, não há solução; porque, desde o começo, nossa natureza é o caminho, o meio, bem aqui e agora. Porque não há caminho, nossa prática é seguir infindavelmente esse não-caminho, sem se importar com nenhuma recompensa.
    
Porque o não-eu é tudo, não necessita de recompensa; desde o não-início é em si mesmo a realização completa.

Charlotte Joko Beck - Sempre Zen

Imagem: Charlotte (http://sweepingzen.com/)

27 de setembro de 2012

Roshi Mumon Yamada


“Quanto mais você tenta conhecer os princípios do zen lendo livros, mais se distancia da natureza da iluminação. Entretanto, se tentar alcançar o conhecimento sentando-se, sem especulação, a iluminação começará a brilhar por si mesma, e você compreenderá o verdadeiro Eu Inteiro, o que estava procurando.”

Roshi Mumon Yamada

Imagem: http://onedropzen.org/

25 de setembro de 2012

Meditação em um instante - One moment meditation


Compartilho este video para pessoas que se interessam por meditação mas não tem muito tempo.

Um bom exemplo de meditação para iniciantes e para pessoas muito ocupadas.

Por que palavras?


Um monge aproximou-se de seu mestre — que se encontrava em meditação no pátio do templo à luz da Lua — com uma grande dúvida:

"Mestre, aprendi que confiar nas palavras é ilusório; e diante das palavras, o verdadeiro sentido surge através do silêncio. Mas vejo que os sutras e as recitações são feitas de palavras; que o ensinamento é transmitido pela voz. Se o Dharma está além dos termos, porque os termos são usados para defini-lo?"

O velho sábio respondeu: "As palavras são como um dedo apontando para a Lua; cuida de saber olhar para a Lua, não se preocupe com o dedo que a aponta."

O monge replicou: "Mas eu não poderia olhar a Lua, sem precisar que algum dedo alheio a indique?"

"Poderia," confirmou o mestre, "e assim tu o farás, pois ninguém mais pode olhar a lua por ti. As palavras são como bolhas de sabão: frágeis e inconsistentes, desaparecem quando em contato prolongado com o ar. A Lua está e sempre esteve à vista. O Dharma é eterno e completamente revelado. As palavras não podem revelar o que já está revelado desde o Primeiro Princípio."

"Então," o monge perguntou, "por que os homens precisam que lhes seja revelado o que já é de seu conhecimento?"

"Porque," completou o sábio, "da mesma forma que ver a Lua todas as noites faz com que os homens se esqueçam dela pelo simples costume de aceitar sua existência como fato consumado, assim também os homens não confiam na verdade já revelada pelo simples fato dela se manifestar em todas as coisas, sem distinção. Desta forma, as palavras são um subterfúgio, um adorno para embelezar e atrair nossa atenção. E como qualquer adorno, pode ser valorizado mais do que é necessário."

O mestre ficou em silêncio durante muito tempo. Então, de súbito, simplesmente apontou para a lua.


(Enviado por Tam Hao Van )

24 de setembro de 2012

O Rei da Mente


Hsin-wang-ming por Fu-yu (497-569)

Contemple a mente; este rei da vacuidade
É sutil e intruso.
Sem nome ou forma,
Ele tem grande poder espiritual.

Pode eliminar todas as calamidades

E realizar todos os méritos.
Apesar de sua essência ser vazia,
Ele é a medida dos fenômenos.

Quando você olha, é sem forma;

Quando você o chama, ele ecoa.
É o grande comandante do Dharma
Transmitindo os sutras através dos preceitos da mente.

Assim como o salgado na água do oceano, de cor transparente, 

Certamente está lá, mas sua forma é invisível,
O rei da mente também é assim,
Residindo no corpo.

Ele entra e sai diante dos seus olhos,

Respondendo aos fenômenos, seguindo as emoções.
Quando está despreocupado, sem obstrução,
Todos os esforços têm sucesso.

Quando você realiza a mente original,

A mente vê o Buddha.
Esta mente é o Buddha;
Este Buddha é a mente.

Todo pensamento é a mente de Buddha;

A mente de Buddha permanece no Buddha.
Se você deseja realizar isto em breve,
Esteja vigilante e disciplinado.

Os preceitos puros purificam a mente;

A mente então é Buddha.
Separado deste rei da mente,
Não há outro Buddha.

Se você deseja procurar o estado búddhico,

Não macule coisa alguma.
Apesar de a natureza da mente ser vazia,
A cobiça e o ódio são reais.

Quando você entra por esta porta do Dharma,

Sentando-se ereto, você se torna o Buddha.
Ao alcançar a outra margem,
Você atinge a perfeição.

Os verdadeiros aspirantes ao caminho

Contemplam a sua própria mente.
Sabendo que o Buddha está no interior,
Não há necessidade de procurar no exterior.

Bem agora a mente é o Buddha;

Bem agora o Buddha é a mente.
A mente brilhante conhece o Buddha;
O iluminado conhece a mente.

Separado da mente, não há Buddha;

Separado do Buddha, não há mente.
Aqueles que não são Buddhas não podem penetrar;
Não estão preparados para a tarefa.

Agarrar a vacuidade e bloquear a tranqüilidade

Resulta em flutuar e afundar.
Nem buddhas nem bodhisattvas
Estabelecem suas mentes deste modo.

O grande ser da mente brilhante

Despertou para este som sutil.
A natureza do corpo e da mente é maravilhosa;
Suas funções não precisam ser alteradas.

Assim, o sábio derruba a mente e a deixa ser.

Não diga que o rei da mente é vazio e sem essência;
Ele pode fazer o corpo
Fazer o mal e o bem.

Não existe, nem é não-existente.

Aparece e desaparece imprevisivelmente.
Quando a natureza da mente parte da vacuidade,
Ela pode ser sagrada ou profana.

Assim, imploramos uns aos outros

Que a guardem com cuidado.
No momento de se moldar,
Ele se reverte ao flutuar e afundar.

A sabedoria da mente pura

É tão preciosa quanto o ouro.
O tesouro de sabedoria do Dharma
Está dentro do corpo e da mente.

O tesouro do Dharma da não-ação não é superficial nem profundo.

Todos os buddhas e bodhisattvas realizaram este mente original.
Para aqueles cujas condições estão corretas,
Ela não é passado, presente ou futuro.

Verso da iluminação


A mão vazia segura a enxada.

Os pés andando, cavalgando o búfalo d'água.
O homem anda sobre a ponte,
A ponte flui, a água não flui.

Adaptado de Sheng-yen, The poetry of enlightenment: Poems by ancient

Ch'an masters. Elmhurst: Dharma Drum Publications, 1987. Pág. 15, 17-20.
Imagem: Shambhala Publications (http://www.shambhala.com/)

21 de setembro de 2012

Momento presente, momento maravilhoso




Em nossa sociedade atarefada, é uma grande ventura respirar conscientemente de vez em quando. Podemos praticar a respiração consciente não só sentados na sala de meditação, mas também enquanto trabalhamos no escritório ou em casa, enquanto dirigimos, ou quando estamos sentados no ônibus, onde quer que estejamos, a qualquer hora do dia.

Há uma infinidade de exercícios que podem nos ajudar a respirar conscientemente. Além do simples "Inspirando-Expirando", podemos recitar em silêncio estas quatro linhas enquanto inspiramos e expiramos:

Inspirando, acalmo meu corpo.
Expirando, sorrio.
Pousado no momento presente, sei que este é um momento maravilhoso.

"Inspirando, acalmo meu corpo." Recitar essa frase é como beber um copo de limonada gelada num dia de calor (dá para se sentir o frescor invadindo o corpo). Quando eu inspiro e digo esse verso, chego a sentir minha respiração acalmando meu corpo e minha mente."Expirando, sorrio." Você sabe que um sorriso pode relaxar centenas de músculos no seu rosto. Sorrir é um sinal de que se tem domínio sobre si mesmo.

"Pousado no momento presente." Enquanto estou sentado aqui, não penso em mais nada. Estou sentado aqui e sei exatamente onde estou.

"Sei que este é um momento maravilhoso." É uma alegria estar sentado, em conforto e segurança, e voltar para a respiração, para o sorriso, para a verdadeira natureza do eu. Nosso compromisso com a vida é no momento presente. Se não tivermos paz e alegria agora, quando as teremos? Amanhã, depois de amanhã? O que nos impede de sermos felizes neste exato momento? Enquanto prosseguimos com nossa respiração, podemos dizer simplesmente, "Acalmo, Sorrio, Momento presente, Momento maravilhoso."

Esse exercício não é só para os iniciantes. Muitos de nós que praticamos a meditação e a respiração consciente há quarenta ou cinquenta anos continuamos a praticar dessa forma, porque esse tipo de exercício é muito importante e muito fácil.

Thich Nhat Hanh
Imagem: 
Metta Refuge (http://mettarefuge.wordpress.com/)

19 de setembro de 2012

Receita Zen para o Dia a Dia



Em verdade, em verdade vos digo, a menos que um grão de trigo caia na terra e morra, ele permanece sozinho; mas, se morrer, trará muitos frutos.


A Bíblia diz: "A menos que você morra, não poderá renascer para a vida." A prática budista consiste em ir morrendo devagar, passo a passo, deixando de nos identificar com as nossas fixações. Se nos mantemos fixados ao que quer que seja é porque ainda não morremos. Assim, quando deixamos de nos fixar, agrilhoar, a nossos parceiros não quer dizer que não os amamos porque na medida que desenvolvemos a prática, reduzimos as compulsões. Nosso amor cresce e a compulsão diminui porque não é possível amar o objeto de nossa compulsão.

Se precisarmos de aplausos, é porque ainda não morremos.
Se precisarmos de poder, é porque ainda não morremos.
Se precisarmos de destaque, é porque ainda não morremos
Se não pudermos trabalhar com humildade, é porque ainda não morremos.
Se precisarmos projetar uma certa imagem, é porque ainda não morremos.
Se precisarmos que tudo venha de encontro aos nossos desejos, é porque ainda não morremos. 

Eu não morri de nenhuma destas formas. Sinto ainda os grilhões que me prendem e não coloco grande empenho em me libertar deles; ao morrermos eles deixarão de existir. Neste sentido, um iluminado não é humano, e não conheço ninguém assim. Ao longo da vida conheci pessoas extraordinárias, mas jamais ninguém assim. Então, vamos nos contentar em ser quem somos, praticando com empenho, porque já é ótimo! Na medida em que nos libertamos de nossos grilhões podemos, cada vez mais, abarcar a vida tal como ela se manifesta. Este é o voto do bodhisattva. Assim, na medida em que a nossa prática amadurece — e somente neste medida — podemos servir melhor, agir melhor, integrando as polaridades, é disto que consta a prática do Zen. Meditar, como meditamos, é o caminho, então vamos meditar com todo empenho. Só posso ser quem sou hoje, estar presente aqui e agora e agir à luz desta experiência. É tudo o que posso fazer. O demais é pura fantasia fabricada pelo ego.


Texto de Charlotte Joko Beck 
Tradução para o português de Tenzin Nandrol
Imagem: Non-Duality Magazine (http://www.nondualitymagazine.org)